Dias atrás, presenciei uma discussão inflamada entre dois pecuaristas, num bar de Ribeirão Preto, SP, sobre o cercamento das áreas de preservação permanente (APPs) e da Reserva Legal nas fazendas. Um dos produtores disse ter tomado essa medida e tentava convencer seu colega de que ela é obrigatória por lei, no que era contestado, criando-se uma grande celeuma. Gostei tanto do tema que resolvi me debruçar sobre ele.
Algumas pessoas argumentam que não se pode deixar o gado entrar nessas áreas, porque ele pode impedir ou dificultar a regeneração natural da vegetação nativa, fato este considerado crime (art. 48, da Lei 9.695/98). Volta-se, portanto, ao problema que originou a discussão no bar: o pecuarista é ou não obrigado a cercar APPs e Reserva Legal? A princípio, a lei não obriga a isso. Até porque as cercas em áreas protegidas podem dificultar o trânsito e a fuga de animais da fauna silvestre, inclusive em momentos de incêndio na mata, além de ter alto custo para o produtor.
Outra questão que pode ser analisada, para se definir se o não cercamento de APPs e da Reserva Legal é ou não delituoso, nos termos da lei penal, é aferir qual a quantidade de animais teria o condão de dificultar ou impedir a regeneração natural da vegetação, já que, na área criminal, os fatos precisam enquadrar-se perfeitamente nos pormenores da lei (Princípio da Taxatividade), como se fosse uma “mão na luva”, uma “chave na fechadura”, não se admitindo a figura da analogia contra o acusado (vedação in malam partem). Usando uma linguagem mais técnica, analisamos em Direito Penal a tipicidade formal e material.
O que diz a lei?
A lei dos Crimes Ambientais, em seu artigo 48, penaliza o ato de impedir ou dificultar a regeneração de florestas e demais formas de vegetação. Ora, impedir é obstruir, interromper, e dificultar é tornar algo custoso, o que não nos parece ocorrer no acesso de gado na mata, até porque os animais entram e saem desses locais, razão pela qual concluímos pela inexistência de crime nesta conduta.
A título de exemplo, a construção de edificações, como uma casa, nas áreas de preservação, sim, em tese, poderia configurar delito. Outro fato a ser considerado é o seguinte: em períodos de estiagem, a diminuição considerável de forragem nos pastos naturalmente empurra parte do rebanho para dentro da mata à procura de comida. Trata-se de um fenômeno instintivo de qualquer ser vivo.
Há ainda um fato importantíssimo que descaracterizaria o crime supostamente praticado. O Código Florestal, em seu artigo 9, diz o seguinte: “É permitido o acesso de pessoas e animais às áreas de preservação permanente para obtenção de água e para realização de atividades de baixo impacto ambiental”. Como se vê, não basta conhecer apenas a lei penal, mas normas extrapenais que regulam diversas condutas descriminalizadoras. Chamamos isso de norma penal em branco. Desta feita, provando o pecuarista que o rebanho adentra a floresta em busca de água – fato este permitido nos termos da lei (a qual, aliás, não faz nenhuma ressalva) –, o fato deixa de ser crime.
Legislação estadual
É bem verdade que, em matéria de meio ambiente, os Estados também podem legislar; desde que não contrariem ou embaracem a Lei Federal, que, nitidamente, prevê a excludente. Mas, mesmo que o pecuarista fosse obrigado a impedir o ingresso dos bovinos em áreas protegidas por lei, não haveria crime, se ele ocorresse de forma culposa, ou seja, sem a intenção de causar o dano, uma vez que crimes dessa natureza não são passíveis de punição por essa modalidade (culposa).
É bem verdade que em Direito dificilmente existe uma pacificação sobre um tema proposto. Trata-se de uma característica da ciência jurídica e, possivelmente, encontrar-se-á posições em sentido contrário. Todavia, com base na estrutura, princípios e apregoados do Direito Penal, concluímos pela inexistência do crime. Vale ressaltar, porém, que o cercamento de matas ciliares é recomendável, por evitar assoreamento e eventual contaminação das fontes de água pelos animais.